quarta-feira, 14 de julho de 2010

Cisco - Em homenagem à música do DMN

Cisco

Diz que a química brota como flores inversas, calcificando os alvéolos e diminuindo o espaço da respiração. Explosões de amônia, bombas de éter, soda cáustica, os pulmões endurecidos já não inflam nem se contraem e por isso são como esqueletos asmáticos, em crônicas crises de falta de ar.

-Porra pivete, cê num abraçou minha idéia! A gringa já tava na minha fita, ia dar na mão de boa!

- Dá na mão porra nenhuma pivete, aqui tá cheio de X9, vacilão. O rasta do bar ali: X9, o vigia da loja: X9, se vacilar até você é X9!

-Cê tinha abraçado minha idéia pivete, e me falseou na hora do crime, se vacilar outra vez eu vou te fulerar de menor...

-Eu abro sua lata com um paralelo quando você tiver dormindo...

Puta só, ladrão só! Ditado antigo do Mangue que estamenta a solidão dos extraviados. Eles subiram abraçados a Alfredo de Brito brincando de lealdade só pra gastar o pânico e dar tempo de escolher uma outra presa. Encardidos até o sangue, sujos mesmo, cobertos com camisas enormes ,vestindo até o meio das canelas. Não se pode dizer se são mesmo crianças, se não cresceram, ou se encolheram. Rostos manchados, de pele esticada sobre os ossos salientes, os olhos são ágeis sob a cabeleira crespa descorada. As mãos são nodosas, os pés descalços são grossos como couro.

- Give a piece gringo! Hungry! Hungry! – Aponta alternando, a própria barriga e a metade do cheeseburguer no prato do holandês – Thank you, my friend, você my friend!

- One dólar gringo, my friend, uno euro, per favore, my lunch, one dólar per favore…

- Quer pousada? Capoeira? Marijuana? Cocaine? Quer vir acá? Mira, mira, mira...

- My friend, linda, beautiful, dá me uno euro, per favore…

Puxava a loira pela camisa, o gringo pelo braço, dois pequenos gremlins de rostos deformados, assediando a caça antes de dar o bote. O loirão já tinha entregue o lanche e as moedas que tinha no bolso. Talvez desse o mole de puxar a carteira, não fosse o garçom a enxotá-los com o cabo da vassoura nas costelas. O casal era entre embaraçado e ofendido, entre amedrontado e agressivo.

- Criança coisa nenhuma – disse o garçom – ali já tem mais de dezessete anos de crack nas costas, cada um.

A periferia tem um ódio estranho dos seus entes mais vulneráveis: Loucos, mendigos, homossexuais, moradores de rua, viciados, são vítimas preferenciais desse sadismo urbano, que se compraz em pisar a cabeça do que anda ainda mais fodido que a maioria.

Há também um sadismo latente em se fazer turismo em países cheios de miseráveis.

-Tem dois conto só ainda pivete, num dá nem pra uma. Se não gerar nada por agora a casa nossa vai cair tá ligado, né?

- Gera, gera, gera, olha no lixo antes que o carro passe, pra ver se acha alguma latinha.

- O soldado me deu uma bicuda nas costas ontem quando eu tava no lixo. Disse que eu tava sujando a rua toda.

- Nada pivete, cê tá é devagar demais, parece que tá fumando maconha…

- Que desgraça de maconha, pivete, tá me comediando?

Tentou-se de tudo por aqui: Nos anos setenta os cortições escondidos nos prédios históricos tocavam Amado Batista e Waldick Soriano enquanto seus moradores injetavam xarope pra tosse na veia, pra ficarem loucos. Vieram os oitenta, os gringos abriam bares absurdos carregados de exotismo junk, e encheram as ruas de cocaína, cara e pura. Os degraus das escadas ainda rangiam como porcas estupradas, trepava-se e cagava-se nos corredores e as putas seminuas faziam filas nos banheiros coletivos às sete da manhã. As crianças misturavam clorofórmio com essência de frutas e se drogavam com a famosa loló, enquanto ratazanas enormes devoravam as orelhas e os narizes dos recém-nascidos.

Tentou-se cola de sapateiro, thinner, benzina, esmalte, bebeu-se álcool com água e um forte cheiro de ganja saía pelas janelas perfumando permanentemente as ruas. Engoliu-se com pinga ou com café: Royphinol, Diazepam, Rivotril, Lexotan, Valium, Gardenal, Lorax, Fenobarbitol, os travestis usavam giletes escondidas nas gengivas e os táxis eram pretos e amarelos.

Entraram no elevador Lacerda, vindos da Conceição, trazendo nas mãos um relógio antigo:

-Aqui vale três pedras, pivete!

-É, três pedras…

Apontou o relógio pra outro passageiro:

- Quer pagar dez conto no bobo pivete?Dez conto, o bobo tá novo, zerado…

O outro, branco pobre baiano, vinte e poucos anos, dente de nicotina, sandália havaiana emendada com arame, camiseta surrada com a cara de um candidato. Avaliou o relógio, retornou os olhos ao rosto do menino, observou em silenciosa meditação, enquanto a cabine subia velozmente exibindo flashs de cidade baixa a cada fresta de ventilação:

- Porra pivete, vou te falar…eu fumo crack pra caralho, sou viciado, da pedra eu só saio pro cemitério. Mas você…

- Quer pagar no bobo pivete? – insistiu o menor irritado, balançando o relógio na frente do outro:

…você pivete, já nasceu no crack, pôrra você só conhece crack, pivete, você é feito de crack…
Saíram rápido, quando a porta abriu na Praça Municipal, ainda cobrindo o rapaz dos mais diversos elogios. Esse um entrara numa reflexão profunda e dizia baixo para si mesmo enquanto os dois relojoeiros se afastavam:

-Porra, o pivete é feito de crack…

Eles nem lembravam. Na ladeira da Praça os pretos mulçulmanos tentaram uma rebelião a séculos atrás. Desceram pra 28, o lixo pela rua e os casarões em ruínas faziam lembrar aos mais velhos, o antigo mangue, bem antes da reforma. Era automático: O relógio rapidamente se transformou em duas pedras. Subiram até o muro da igreja do São Francisco e sentaram em um batente. Cachimbo feito com o tubo de uma caneta e durepox. Isqueiro, o efeito é imediato. Agora, nada mais que diminuir a fissura, que minorar a crise da falta, o pânico. A cabeça vai a mil, o coração dispara, é como uma corrente elétrica de um milhão de volts invadindo o corpo e despertando cada uma por uma célula. Levantaram em silêncio, sem barato. A noite estava apenas começando.

Sentados numa calçada na praça da Sé, o policial observa sem dar uma palavra:

-Vocês roubaram minhas latinhas seus sacizeiros!! Gritava um outro preto, morador de rua, andando nervosamente, alguns passos simétricos da direita pra esquerda.

- A gente não roubou não!Disse o mais novo, com voz inocente, enquanto mexia distraído, a unha do dedão com a ponta de um prego.

-Vocês roubaram meu alumínio, seus satanás, eu vou matar vocês dois!

O guarda abriu um pouco mais os olhos e os ouvidos.

-A gente não roubou não! O mais velho encostado em uma porta, com os braços estirados e o pescoço levemente inclinado, olhando fixamente o outro lado da rua.

-Vocês me roubaram, seus diabos eu vou matar vocês dois. Não mato agora pra não alterar o plantão do soldado aí, mas vocês vão descer pra fumar pedra no cais e eu vou quebrar vocês á paulada.

- A gente não roubou nada! Enquanto o outro descia o Pau da Bandeira, sem olhar pra trás. Fazer o quê? Trocar na boca o alumínio por crack, pipar lá atrás do São Miguel e subir o Pelô, pra ver o que gera.

Dormir ele não dorme, o sacizeiro. Ele desaba em qualquer lugar, quando o corpo gasto desfalece. No meio da calçada, atrapalhando a passagem. Embaixo do banco no ponto de ônibus, na frente do módulo policial, no batente de pedra portuguesa da catedral. Trabalhador vai pro serviço de manhã cedo, sacizeiro tá ciscando o chão de pedregulhos, procurando a pedra que deixou cair. Gira, gira, engatinha procurando a droga e já nem sabe se deixou cair alguma coisa ou se foi delírio, mas se caiu mesmo não pode deixar perder.

-Divido com você, pivete, a gente faz um gringo desse e compra mais de quarenta pedra.

-Mais de quarenta pedra, cê divide porra nenhuma, cê vai é fumar tudo sozinho…

-Tô te dando a idéia cheque. Você é meu parceiro pivete, se você abraçar minha idéia, a gente vai fumar quarenta pedra.

-Eu fumo quarenta pedra, já fumei. Três dias na atividade.

-Eu fumo também, mais tem que ficar ligado pros mais véi não querer tomar…

-Tomar minha pedra pivete? Cê tá maluco? Cê tá fumando maconha mermo, né pivete?

-Maconha porra nenhuma pivete, se plante, eu disse só pra nóis ficar ligado.

A pedra, o crack, o pitiro, kriptonita, o queijo, a caspa do diabo, caiu pesado por aqui no início dos 90´s, quando os homens começaram a reformar o brega. Sob as vistas grossas da polícia, os cachimbos se multiplicavam, enquanto o governo se ocupava em expulsar os moradores de suas casas em troca de indenizações irrisórias. Mortes, agressões, incêndios na calada noite, nada foi tão eficaz pra calar a boca dos mais resistentes quanto o crack. Peão recebia de dia a indenização, de noite já tinha tudo ido na fumaça. Os côro-de-rato ficavam como zumbis habitando as carcaças dos casarões, fazendo fogueiras com sacos de lixo, roubando qualquer um, e furtando qualquer coisa que pudesse ser trocada na boca. Artesões, pintores, sapateiros e músicos. Ladrão, vagabundo, dona-de-casa e dama-da-noite, todos se encantaram pela droga barata e forte, se hipnotizaram pela pedra sem brilho e hoje formam o exército de mortos-vivos que se escondem nas sombras e becos do cinturão do crack que circunda o Pelô.

O menino de crack já não quer mais saber de ser menino de rua, capitão de areia. Agora é Mujahadine, homem-bomba Taliban, kamikaze suicida. Se atira como gavião velhaco na bolsa da gringa que desce a ladeira e corre, leve e certeiro, na direção do Taboão, sem-vergonha, às dez da manhã. Policinha que cresceu impressionado com filme de ação, baleou nas costas, a vinte metros de distância. Cobriu com o pano branco dado pelos comerciantes, guardou a arma, ligou para a central. O povo passava ocupado, corujava um minuto e seguia, na correria do pão de cada dia. O outro encostou do lado, ficou parado assistindo a cena. Dedão enfiado na boca, a outra mão na cintura. Os ossos da clavícula expostos pela blusa de gola larga.

Pensava nas quarenta pedras. ( Mandingo – 08/2008)

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