quinta-feira, 7 de julho de 2011


segunda-feira, 07 de julho de 2011
Laroiê!

Está no ar, lançado. Laroiê Exú, que todos os caminhos sejam abertos. Kawô Kabiecilê, Salve meu pai Xangô, seguimos sempre na justiça e na humildade. E tudo vai sempre dar certo!


Salvador Negro Rancor

Os Contos do livro lançado e repercutido, Salvador Negro Rancor - São pedaços da afrovivência nas ruas do Pelô. A idéia surgiu quando o professor Maka me convidou pra participar de uma coletânea com contos sobre o Pelô. A coletânea não saiu ainda e eu percebi que tinha muitas outras coisas pra contar sobre o dia a dia do centro de Salvador. Pois vai aí( É só copiar e colar):

- Kaska

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/kaska.html

- Salvador Negro Rancor:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/salvador-negro-rancor-o-conto.html

- Pipoca:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/pipoca.html


- Por Acaso:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/por-acaso.html

- Cisco:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/cisco-em-homenagem-musica-do-dmn.html


Apresento também alguns trabalhos de pesquisa,
Sobre as vidas, obras , intersecções e antagonismos entre os líderes afro-americanos Booker T. Washington, W.E. Dubois e Marcus Garvey:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/marcus-garvey-booker-t-wahington-e.html

Um trabalho que propõe uma reflexão profunda sobre três diferentes projetos de posicionamento nacional para o povo negro nos Estados Undos, que penso poder servir de base pra a nossa reflexão aqui no Brasil.

Dois artigos que fiz durante a graduação, bem bibliográfico, sebre assuntos referentes à prática e à história da Capoeira Angola:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeiragem-carioca-no-seculo-xix.html

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/musicalidade-da-capoeira.html

O trabalho seguinte é a minha monografia, para a conclusão do curso de história da UCsal, tratando de uma história recente e que diz respeito a todos os que se importam com o futuro das manifestações da nossa afrocultura e de que forma estamos nós lidando com essa modernidade neoliberal:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/capoeira-angola-do-ostracismo.html

E um conto não publicado que fala sobre um período muito louco que vivi em Belo Horizonte, misturando fatos reais com ficção, mas que foi muito importante pra mim, rsrsr, sempre sobrevivente, espero que o Paulista ainda esteja vivo e bem, espalhando sua sabedira pelas ruas do mundão:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2010/07/paulista-inedito.html

TEM CONTO NOVO NO BLOG!!!!!!:

http://mandingoliteratura.blogspot.com/2011/06/mara-ao-mesmo-tempo-em-que-ele-dirigia.html

Firmeza, por enquanto é só isso ( não me atrevo a colocar as poesias, não são muito boas, na minha opinião), quando aprender a colocar os endereços dos textos como link, faço isso, pra lhes poupar o trabalho de copiar e colar, by now, é copiando e colando mesmo, tem canseira maior na vida... Enviem seus comentários, isso é muito importante pra mim. Axé!!!!

Postado por Mandingo às 06:5

terça-feira, 21 de junho de 2011

MARA

Ao mesmo tempo em que ele dirigia louco pela estrada, ela sangrava uma vida entre as pernas no casebre à beira da maré.
Na pista, somente as luzes altas dos faróis, as carretas que passavam carregadas, apressadas levando tudo pela frente, deslocando ar no vácuo de seu peso. Nem o brilho mínimo dos barracos que ladeiam o asfalto. Só o vazio, os carros. Suas pupilas dilatadas de droga como faróis de milha.
Escorreu direto n’água, uma massa quente e ensangüentada pelo buraco entre as tábuas que usavam como latrina. Ensangüentada e quente. Comida de peixe, de siri. Dor imensa, cabeça estourando, sangue ainda descendo misturado à diarréia. De cócoras na escuridão infinita da palafita, não via nada. Se segurava nas ripas folgadas da parede, inalando a fedentina daquela parte onde a água salgada estagnava, entre fetos e corpos de cachorros, sacos de lixo, garrafas vazias, fezes. Dor na vagina, parecia estar parindo cacos de vidro.
Ele sentia o tilintar das têmporas, os sobressaltos das batidas do coração, o descontrole do pulso, os flashes de enxaqueca. Rangia os dentes, acelerava ao máximo.
Ao mesmo tempo em que ela, despida, lavava-se com a água da lata e, sentindo alma, mente, pernas, braços, pescoço desfalecendo, buscou o colchão estirado no chão, ele estacionava o carro novo silenciosamente, tenso sob a luz amarela do poste, grilos e sapos o atormentavam.
Dentro do carro mesmo, sem sentir a noite fria, apagou.

Ele buscava salvação, ela só queria uma morte indolor.



Pois nasce o sol após todas as noites e mesmo sobre as mais longas a claridade de sua luz rompe miasmas e esconjura os fantasmas. Ali então, uma frágil neblina cobria a baixada, quase uma ilhazinha de casas, rodeada de mangue, de mata e de mar. Quem descesse o morro a essa hora, de carro ou a pé, sempre se encantaria pelo brilho espalhado do orvalho, pequenos arco-íris em cada quintal loucura dos pássaros, gritos de crianças, vozes de rádio e cheiro de pão e café.
Quase uma ilha fechada pelo morro, entre o morro, a mata e o mar. Além dos poucos franceses que vez por outra se hospedavam na fazenda dos padres, só o que se via era gente preta de todos matizes, mas em sua maioria, preta como hoje só se vê na África ou no Curuzú.
Sentado em frente à pequena padaria na esquina da rua principal, um antropólogo qualquer anotaria em sua caderneta amassada, homens quimbundos saindo com sacos de pão, mulheres yorubanas esperando a torrefação do café, meninos zulus com fardinhas infantis caminhando de mãos dadas em direção da escola, velhas haussás comprando fumo de corda para os seus cachimbos de barro. Registraria teiús e tatus e raposas e cobras com mais de dois metros que atacam as pessoas no tempo de choca. E cardeais e papa-capins e tiés e sanhaços. E manga e jaca e banana e pitanga e jambo e caju e fruta pão e inhame e aipim e banana da terra. Andasse um pouco mais até o morro no final do distrito, onde a Mata Atlântica original se não era mais virgem, mantinha-se ao menos moça de pouca experiência, encontraria um pequeno vilarejo de casas de sapé e telhados de piaçava, onde os meninos falam uma língua antiga e misteriosa que quase não se entende pelo povo cá de cima.
Ficava, no entanto, a pouco mais de meia hora de Salvador, e menos tempo ainda das empresas petroquímicas de Camaçari. Pela rodovia, carros e caminhões de todo lugar transitavam levando cargas para Candeias, São Francisco, Feira, Vitória, Minas ou São Paulo. Mesmo olhando-se pro mar, a menos de cem metros se divisavam várias ilhas para onde os negros nadavam fugindo da escravidão. Os brancos ,que eram donos de tudo aquilo, deixaram apenas o nome do lugar, sobrenome da família, além de um engenho e um sobrado em ruínas.


O tio veio, logo foram avisar ao velho que o sobrinho tava dormindo no carro e todo mundo que passava metia a cara pra olhar. Carro como aquele por ali, somente a Mãe de Santo tinha, presente de uns italianos que ela ajudou a fechar uma transação comercial. O dela ficava o tempo todo estacionado, coberto de folhas embaixo de uma mangueira. Só usava quando ia pra Salvador, ou fazer Candomblé em algum distrito próximo.
O velho teve de bater por uns cinco minutos até que ele abrisse os olhos. Sorriu, por dentro do mal-estar. Já uma ruma de meninos estava ao redor observando o que acontecia. Baixou o vidro e acenou pro tio. Fosse um vampiro e a luz do sol não incomodaria tanto. Saiu tampando os olhos com a mão, bateu a porta do carro, o velho fez um resmungo, um muchôcho de desaprovação e acenou com a cabeça pra que ele o seguisse.
A casa era a mesma, na esquina da rua que ia para a prainha, arrodeada de gramado, cercada de graxeiras, comigo-ninguém-pode, cidreira, capim santo, violetas e um jasmim enorme sobre a cerca do quintal. Novidade somente os azulejos da fachada, o piso de cerâmica no chão, os sofás, a tv de plasma que ele mesmo mandara de Salvador, sem atinar pro desacerto daquela telona, com a salinha tímida de suas lembranças.
- Ressaca? Indagou o tio, na força dos seus sessenta. Porte de atleta de subúrbio, pescador, bom nadador, o cabelo agora branqueando. Forte, seco e musculoso, com seu bigodinho de canalha eternizado no rosto. O velho que lhe criou quando a irmã foi tentar a sorte na cidade, e criou como pai.
-É...
-Dirigiu bêbado pela BR?
- Foi...
- Quer ver a desgraça de sua tia Não é Enoque?
- Sossegue tio, o importante é que eu tô vivo...
- Hum, ás vezes é...
- Com saúde...
- Ah, você ta descansado então, vamo lá em cima comigo que eu vou comprar umas iscas pra hoje de noite. Sua tia ta lá nas roupas, vá falar com ela e venha.
- Acho melhor não, meu tio, quero uma roupa branca e um chinelo pra ir lá em minha Mãe Carminha toma a benção e buscar um banho de folha pesado que eu to carregado.
- Naquele inferno você não pisa, meu filho – a velha vinha da cozinha enxugando as mãos no saião florido que a cobria dos peitos até debaixo dos joelhos – essa família já se libertou do diabo.
- Benção minha Tia – ele tentou tomar pé da situação.
- Jesus te abençoe, meu filho, que ele é o caminho, a verdade e a vida.
Macumbeira véa, pensou, o cheiro de cuscuz exalando da cozinha lhe jogava em viagens no tempo. A mãe, a mãe da mãe da mãe da tia, tudo macumbeira desde que Odudwa fundou Ilê Ifé, e agora isso. A velha continuava forte embaixo do saião, tudo protuberava. De subir e descer morro, de mexer massa de acará, de ajudar o coroa na roça, e agora isso. Ele macumbeiro desde a barriga da mãe, foi nos aguidavis de araçá que aprendeu os toques que lhe abriram os aeroportos do mundo. O batuque que virava a madrugada que encheu sua conta de Euro, que pagou seu carro e ele tava mesmo certo de que a razão profunda de sua vida estar toda desandada eram os dois anos sem fazer suas obrigações e nem dar comida à sua cabeça, e agora isso.
Olhou intrigado pro Tio e viu, pela primeira vez na vida o velho virar o rosto desviando pra porta da rua o olhar.
- Gal, o menino vai subir comigo.
- Louvado seja Deus Enoque, ele vai tomar banho trocar de roupa e comer alguma coisa, olha a cara desse abençoado.!
O velho ciscou, olhou pra a rua, olhou pro chão, olhou pra a velha, pra as duas telhas que precisava trocar, olhou pro sobrinho, resmungou, e antes de olhar pro chão de novo falou:
- Ele disse que ta descansado...quando voltar toma banho. Bom que ele me ajuda com o peso e eu não preciso pagar pros meninos lá de cima, vumbora...
- Que peso homem? Cê num disse que ia só buscar isca?
- Eu me lembrei que o Chico ia trazer um cacho de banana da Caroba pra mim.
E saíram da casa antes que a velha pudesse pensar. O sol já estava mais forte, mas incomodava menos, parecia que o suor ia limpando, limpando. O velho andava mais rápido que ele, subindo a estrada asfaltada interminável entre o matagal. Velho forte da porra, pensou, quase meio metro menos que ele, mas subia a ladeira num fôlego só, dando três passos pra cada um dele. No meio do caminho, viu o velho quebrar pra a esquerda, numa picada que descia pelo mato. Seguiu em silêncio por um minuto.
- Ta indo pra onde, meu Tio?
- Pra casa de Mãe Carminha – respondeu sem precisar se virar – você ta precisando de um banho de folha!
- Hum...
-Quer uma banana?
- To sem fome... – e achou sua voz com um tom meio infantil.

Após as onze, quase nada se via por ali. De dentro das casas, o piscar das tvs, alguns carros que chegavam de Candeias ou Salvador e tinha um ônibus com os operários que voltavam de Madre de Deus às quinze pras doze. Então algumas mulheres iam na pracinha esperar seus maridos. De resto, na última semana o velho Totonho encontrou dezesseis de suas galinhas mortas com o pescoço aberto e sem sangue nenhum mais. Aí nem os meninos que às vezes dormiam mais tarde tentando vencer as meninas no escuro resistiam ao medo.
Nessa hora era nítida a pequenez do lugar, que a escuridão imensa da mata e do mar emoldurava. Silencioso, tudo, até os cachorros respeitavam. Pronto para todo tipo de assombração atuar anônima e fugir sem deixar nenhuma prova. Agora que os crentes tinham trazido o Diabo prali, a vila se calava e deixava a madrugada passar, madrugada de brumas e névoa, madrugada de longos ventos frios que varriam os trilhos da Leste, cobertos pelo mato antigo.
Somente o Futica virava a madrugada empunhando aquela lâmpada acesa na beira da maré e fazendo barulho em sua vitrolinha miserável tocando seresta. Da casa construída sobre um barranquinho baixo na beirada da água, puxou uma palafita pequena, uma sala de madeira coberta com telhas de zinco, sem mais conforto que umas mesas e cadeiras e um sinuca que trabalhava firme até as dez, quando o silêncio era imperativo pros pescadores que ali esperavam a hora de entrar no mar.
Havia sempre uns seis ou sete a essa hora, sentados em silêncio puxando cigarros de fumo, calados, fixando o negrume da água, escolhendo de cabeça um bom pesqueiro, fazendo rezas, contando a quantidade de iscas. Sempre um desandava na melancolia da música e viajava num passado de juventude e força, quando os navios da Baiana atracavam ali perto pra pegar carvão e telhas e tijolos das pequenas fábricas locais. Aquele era um lugar abandonado, isolado. No tempo bom vinha até gente de Santo Amaro pra trabalhar no atracadouro ou nas olarias, o trem cortava o recôncavo todo, cheio de frutas, de carne, de cerâmica. A Festa da Padroeira era uma multidão, com fogos, danças, brincadeiras, fanfarras e muita nega bonita. Hoje em dia, só o que vem de fora é bandido, fugindo dos policiais de Salvador.
Ele fumava um cigarro e bebia um conhaque, pra cortar o gelo da noite. Tudo nele parecia se reanimar, na medida e que a droga ia deixando o corpo. Alternava momentos de semi-euforia e dormência, cansaço, mas nada da paranóia ou depressão que ele achou que se instalariam assim que ele quebrasse o círculo do vício. Só passou o dia todo seguindo o tio e prestando atenção em suas ordens, andando pra cima e pra baixo vendo e falando com gente que não encontrava há anos, carregando cacho de banana nas costas, preparando linha, anzol, chumbada, isca, consertando os remos velhos de guerra, parecia que essa vida tranqüila e sem maiores nadas ia lhe tomando os poros e já estava por um fio de esquecer qualquer coisa acontecida antes de ontem.
- Meu tio, aquela não é a Mara, sentada ali no canto?
- A filha de Neidinha, ela mesma, não sei que inferno essa menina ta fazendo aqui uma hora dessas. Só dá desgosto pra a mãe, essa daí. Problema puro, É melhor você nem chegar perto.
Ele já tava do lado dela, puxando a cadeira. Curvada, ela não viu o rapaz se aproximar:
- E aí cainana véa, que é que há com você moça?
- Não vou bem como você, mas vou levando, neguinho.
Também fumava, mas cigarro de filtro. No copo, uma rodela de limão temperando o conhaque. Jeans surrado, uma blusa preta virada pelo avesso, furos no lábio inferior, na narina esquerda e na cartilagem das orelhas indicavam o gosto por brincos. O cabelo alisado cortado à altura do queixo tinha mechas aloiradas nas laterais e movia-se com a brisa leve que soprava. Suspendeu a cabeça num gesto suave, jogou pro alto a fumaça, sorriu:
- Tem já três anos que não te vejo Enoque?
- Três e meio Mara, se lembre, foi logo depois que o ginásio pegou fogo...
- Sei, que disseram que foram os meninos das Laranjeiras, lembro, o tempo fechou por uns meses aqui, ninguém subia nem descia.
- Isso! E agente ficava bebendo vinho fuleiro nos degraus da igreja, se perguntando porque ninguém teve a idéia de queimar a diretora junto.
- Aquela ali era cainana com jararaca...

Sorriram juntos, ele bebeu o resto do conhaque, ela bicou sua dose, deu mais uma tragada e arremessou com um pitoque o resto do cigarro na maré. Uma atmosfera de afeto os envolveu. Se conheciam desde as fraldas, iam juntos à igreja e ao terreiro, freqüentaram juntos o ginásio e também brigaram várias vezes com os meninos das Laranjeiras. Chegaram a namorar um tempo, ela tinha 16, ele tinha 19.
-Foi nessa época que os italianos me viram tocando o Rum na casa de Dona Carminha e me levaram pra me apresentar na Europa e eu acabei ficando por lá, tocando, dando aula, tentando fazer dinheiro.
- E eu só fiquei sabendo depois que você viajou – ela disse olhando pra o copo em sua mão, sem nada de uma sorriso nos lábios.
- Anda Enoque, é nossa hora!!!- Parecia adivinhar o sobrinho em situação embaraçosa. Eles se despediram com um aperto de mão, ela sorriu novamente e ficaram de se encontrar em outro momento. Ele foi até o balcão e pegou com Futica uma mão cheia de balas de canela.

Desceram as escadinhas de madeira que davam pra um pequeno atracadouro onde a luz pouca do boteco não iluminava. O velho que caminhava com o braço erguido trazendo o candeeiro, mostrando o caminho.
Remou por uns quinze minutos. Apesar do frio da madrugada, o suor brotou fácil da testa. O corpo limpando, pensou. O ar gelado invadiu seus pulmões, o coração acelerava. Toda a musculatura dos braços se reanimava, fazia tempo que ele não consegui nem tocar tambor, do jeito que a paranóia da droga estava.
Pararam no meio do mar. Engolidos pela escuridão, não conseguiam discernir o que ao longe, era água ou vegetação. Mas o velho, cego que fosse, sabia de cor o Caboto a sua esquerda, a Ilha de Maré em suas costas, O Distrito em sua frente, Mapele e a saída da baía à sua direita. Poucas lâmpadas ponteavam a escuridão, era o céu estrelado que os garantia a visão mínima de seus vultos, do nylon, das iscas e do isopor pra guardar os peixes.
- Pronto – disse o Tio – nem fale, nem se mecha, nem peide Enem respire, amanhã quero comer pirão de xaréu!
Logo que baixou a linha n’água, seus pensamentos retornaram a Mara. Como estava magra, os ossos se mostravam nos braços, nas mãos, na base do pescoço e do rosto. Os olhos tinham a expressão cansada. Um bagaço, carcaça daquela moça viva e contagiante. Um pouco de conversa no entanto, e essa primeira impressa se apagava. Sua pele era mais preta que qualquer pele preta do mundo, reluzia igual o mar dessa noite sem lua. Seu sorriso perfeito mostrava os dentes teimosamente bancos engolidos pelos lábios grossos e definidos, o nariz largo se juntava com os olhos profundos e as sobrancelhas cheias, pra lhe dar um ar de permanente desafio. Era a Mara, mesmo magra que um vento derrubava, cada gesto tinha uma graça desleixada que destacavam sua figura em qualquer lugar.
Um puxão na linha lhe trouxe de volta à pescaria. O fuleiro do peixe tinha roubado a isca. Canalha. Podia vê-lo lá embaixo, a mais de quinze metros, comendo sardinha e curtindo com sua cara.
Pois retornou a linha e colocou outro peixe. Desceu. O velho fez um muxoxo de desaprovação. Tinham as duas linhas nas mãos, mais duas cheias de anzóis com camarão pra pegar peixe de cardume. O tio puxou um Xaréu grande, de uns dez quilos, que ele ajudou a subir no barco. O pirão já tava garantido. Ele puxou um carrapatinho bom, de uns quatro quilos, e depois os dois pegaram uma sequência de vermelho que fez já a noite valer. Puxaram nas outras linhas mais vermelhos, tainhas, barracudas e até um polvo vacilão entrou na lambança.
Manhã começou a clarear por trás do morro e logo o sol se anunciou cortando com seus raios a manhã gelada. O velho tava contente, enrolou um cigarro de palha e fez sinal pra que ele remasse de volta. Tirou um cochilo rápido, dormir mesmo só depois do almoço. A tia já o esperava com um belo cuscuz feito com o caldo do polvo.
- Vem comer na mesa menino!
-Aqui ta bom minha tia, deixe eu matar saudade do quintal da senhora.
Sorriu, ela lhe devolveu o sorriso. Isso já fora seu mundo, era agora um quintalzinho de nada, com uma ruma de galinhas ciscando dum lado pro outro, os gatos já deviam estar na sétima geração e o cachorro era certamente, mais velho que a tia e o tio juntos, agora passava o tempo todo deitado, tentando perceber o mundo através dos olhos cegos.
Sorriu sozinho, comendo de mão o cuscuz umedecido com o caldo forte do polvo. Que isso tudo era real, que isso tudo ainda existia, que a terra sob os seus pés, que o sol quente sobre as bananeiras, que as bananeiras que eram a própria cerca viva desse quintalzinho ainda estivessem lá, cheia de abelhas enfeitiçadas pelo mel de sua flor, que as galinhas seguisse zanzando botando ovos de gema quase vermelha que o velho quebrava no caneco e bebia todos os dias de manhã, que o araçazeiro onde ele vivia se pendurando e caindo e se detonando todo agora estivesse maior do que a casa e que os músculos do seu antebraço e do seu peito estivessem agora latejando, lhe parecia a luz paradisíaca no fim do túnel de um pesadelo interminável de sexo branco entre paredes brancas, sobre lençóis brancos e a mesa branca com o prato branco e pequenos filetes de morte branca escravizando sua vontade e lhe matando pouco a pouco.
Sorriu.Foda-se,pensou. Jogou na boca outra mão de comida. Arrotou, peidou, levantou-se com o prato na mão e se viu um homem grande e forte e o mundo era mesmo aquela terra preta sob os seus pés, e o plano do dia era encontrar Mara pra ver qual era mermo a dela.
Sandália de borracha, bermuda de jeans, camiseta dobrada pendurada no ombro, boné jogado pra trás. Lá pras quatro da tarde foi descendo a rua do ginásio até o campão de barro. Todos o cumprimentavam. Quem não era seu primo, era tio, ou primo de algum primo ou tio de algum tio. O sol batia no rosto, ele andava gingando. Os meninos gritavam no pátio da creche, os adolescentes xingavam no pátio do ginásio. Pensou que poderia jogar um pouco de bola pra distrair e suar, rever os amigos, mas o campo estava vazio. Tudo bem que o sol tava rachando concreto, mas isso nunca foi impedimento pra ele e os de sua idade. Nessa hora de luz absoluta, estavam correndo atrás da bola descalços, sem camisa. O campo era um grande clarão aberto ao lado do Ginásio. Dali se via no alto a bandeira branca do terreiro e um pedaço do barracão cercado por um sem número de árvores frutíferas que escondiam as outras casas dos Orixás.
Cá embaixo as casinhas se sucediam miúdas com roupas coloridas estendidas nos varais balançando ao vento, suaves como canções de conforto. Lá perto dos trilhos, mulheres sentadas conversavam, riam alto e ralavam aipim pra fazer massa puba, enquanto pirralhos nus brincavam no meio desviando dos tapas e sorrindo das reclamações. De algum lugar vinha o cheiro característico de castanhas de caju sendo assadas, o que o fez relembrar por quantas vezes em lugares muito distantes, a solidão da ressaca da droga lhe corroera de saudades de qualquer coisa que lhe fosse um pouco familiar, qualquer apelo aos sentidos que lhe mandasse uma lembrança mínima de afeto, segurança conhecida.
Mas até mesmo a italianinha com quem saíra do país numa paixão frenética, com promessas de contratos e shows, mudou completamente o tom, quando chegaram por lá.
- Acho que meus pais não vão gostar de me ver com você – ela disse, logo no primeiro dia – Se souberem que estamos namorando, é capaz de minha mãe ter um choque!
Menina, devia ter uns 20, 21 anos, propôs lhe pagar uma pensão, e que quando viesse encontrá-la, entrasse pelos fundos pra que os pais e vizinhos não vissem. Vivia em Milão, a dona, num bairro arborizado e de ruas largas com grandes casas separadas por quintais floridos e de grama baixa. Ele foi pro bairro dos imigrantes, carregando sua humanidade na mala.
Aquele primeiro dia foi o pior de sua vida. Queda dura que o deixou estatelado no chão. Levantou, mas quando se viu de pé sentiu ter perdido alguma coisa que lhe era muito cara. Agora percebia que essa coisa era mesmo, essa certeza de ser no mundo, essa sensação inconsciente de pertencimento que sentia nesse momento.
De todo jeito, foi no bairro dos sin papiel, que reencontrou a música. Trabalho, dinheiro, mulheres e droga. Viajou por ali, tocando, acompanhando bandas de música latina. Juntou uma grana, juntou mais grana, mandou grana pros tios, aprendeu a falar espanhol, italiano e francês, e quando a loucura da droga estava prestes a lhe deixar louco, viajou de volta pro hemisfério sul. Tentou ainda Rio-São Paulo, arranjou trabalho fácil e até uma turma de alunos de percussão. Mas ali também a droga era cultura e, ainda por cima, de péssima qualidade.
- Sinho, cadê os meninos? Perguntou prum neguinho que passava. De short, camisa regata. Carregando numa sacola um galo enorme que olhava o mundo com o pescoção pra fora. Dava pra ver que era galo de briga, pelo pescoço depenado e as esporas afiadas, denunciando a contravenção.
-Os menino tão tudo na casa de Xandinho jogando Playstation – e seguiu em seu passinho apressado, descendo a beirada do campo.
-Vai botar pra brigar que horas?
- Lá em Didôlo, mas tarde, se quiser chegue lá pra botar cinco conto nesse aqui que ele é matador.
Olhou outra vez o campo vazio. Era uma tarde linda de céu sem nuvem, vacas e cavalos iam tranqüilos mastigando o restinho de grama dentro da pequena área. Desceu até a casa da prima do outro lado dos trilhos. Ainda passava um vagãozinho miserável que fazia uma zoada danada, levando sacos de aniagem de Mapele pra Candeias. A prima não estava, mas mei dúzia de meninos sem camisa se apinhavam no chão da sala, no sofá, nos braços do sofá, imóveis e com os olhos vidrados na tela, onde o cano de uma pistola ia assassinando inimigos por entre os corredores de uma fábrica abandonada.
-Que porra é essa aí? Gritou da janela tentando dar um susto nos pirralhos.
-Counter Strike – um deles respondeu, sem virar o rosto pra olhar.
- Eu quero saber é porque vocês estão aqui no videogame ao invés de estar no campo jogando bola?
- Peraí Tio – respondeu o sobrinho sem olhar.
- Vumbora suas pragas, eu trouxe uma bola oficial da Copa pra agente jogar.
- Peraí Tio!!!!
Naquela sala somente os dedos dos dois jogadores se moviam. Lembrou do e-mail: “ nega, o dinheiro é pra comprar o viedeogame do Xande, presente de natal do Tio...” e em seguida o número de transferência da Western Union. Agora isso aí. O baba da tarde boicotado pelo Playstation. Sorriu de si mesmo, chateado porque os meninos não queriam brincar com ele. Melhor ajudar a velha a tirar as roupas da corda, limpar a casa e ver se o tio tava precisando de qualquer coisa. A maré vazia não dava nem pra tentar um mergulho antes do sol cair, que tinha bem uns vinte metros de lama até chegar na água, e caranguejo ele não era.
-Tchau Alexandre, depois eu passo aí!!
-Tchau tio...



- A vadia á morando lá na maré, que o pai dela botou pra fora de casa.
- Porque vadia? – perguntou embaraçado, o outro puxou o cigarro com força, olhando direto em seus olhos:
-Toda mulher é vadia, mano, tirando Dona Tica, minha mãe, é o que todas elas são!!
Estavam no Barão, no alto do morro que separava o Distrito da rodovia. Ali os meninos tinham limpado o mato do terreno e improvisado uma pracinha, com bancos de madeira, mesas feitas com antigos carretéis de fios de alta tensão. À noite os jovens subiam pra conversar, beber e namorar de frente pra a baía que se estendia margeada pelas luzes da refinaria. O céu tava limpo, estrelado, o ar frio da noite somente refrescava, após um dia longo de muito sol.
Os quatro em sua frente não tinham mais que 23 anos. Todos criados com ele, meninos de família, como se dizia por ali de qualquer um que tivesse casa, pai, mãe, cachorro, avô, fogão e tios. Somente o mais novinho entre eles que os meninos chamavam de Dajega devido às suas preferências zoófilas, tinha atravessado um drama familiar pesado, quando o pai abandonou Dona Joana Grande. A velha não contou conversa e se mandou de volta pro Maranhão, deixando ele e o irmão mas novo dormindo no casebre lá perto do Gongo.
Cresceram da ajuda dos pais dos outros três. Um almoço, um tênis usado dão pelos professores do ginásio, e mais tudo o que as árvores e a maré e as jegas pudessem lhe oferecer. Pra além da dor profunda, eram somente mais dois meninos que subiam a rua da escola, correndo, xingando e desagradando a Deus.
Debruçados sobre o mar escuro, fumavam, bebiam vinho e ouviam rap no aparelho do Cidinho ligado no poste de luz. Tênis Nike, bermuda XXL, camisas do Santos, Boné da Bad Boy jogado pra trás, correntes grossas prateadas descendo no peito, anéis nos dedos.
Enoque bebeu do vinho. Deviam beber vinho branco e champagne, pensou, pra completar o clichê.
- O sistema desrespeira nós, Noquinho, agente não tem que respeitar Zé Povinho nenhum, ta ligado? Nossa cara é acumular as notas de cem e comer as cachorras todas daqui ta ligado? Mas nóis vai sair daqui desse buraco, sangue bom, daqui pro mundão!!
Bebeu mais vinho, o George parecia que tava armado, dando pala de cano por debaixo da camiseta da NBA. Deviam estar vestindo mais de 500 conto cada um, ele sorriu:
- E a história de um terreno no mato só seu, pegar fruta no cacho, cercado de criança? Vocês tem tudo aqui, bando de viadinho chieiro, e ficam tirando amarrado.
- Respeito Noquinho, respeite seus manos que respeito é a base, ta ligado?
Despreocupado, Dajega derramava umas pedrinhas de crack num cigarro de maconha e o fechava com habilidade.
- Vão se lascar, bando de vacilão, da próxima vez comprem um vinho bom pra poder manter essa pose toda, seus paga-pau de paulista, e olhe que meu Vitória ainda vai arregaçar o santos de vocês e eu subo aqui pra tirar onda, bando de passa-fome...
- Vá lá viadão, comer a vadia da Mara e ficar com o pau podre. Depois venha me pedir dinheiro pra te levar no HGE...

Apressou o passo, quase correu, a visão das pedras certamente despertaram os neurônios receptores. Trouxeram de volta a fissura e pensou que o suor poderia acalmar o corpo com um pouco de serotonina. Correu que nem maluco ladeira abaixo, lembrando do argelino que lhe vendia pó em Marselha, quando um dia apareceu com as pedrinhas cor de caramelo, presente pela sua fidelidade.
- Não, isso aí é veneno!! Me espere eu chegar lá no fundo do poço, que até lá eu vou com minha boliviana, enquanto grana não me faltar...
Nunca faltou.
Mas depois daquele encontro três surreal, a porra da pedra lhe mandara um beijo e ele quase lhe jogava um de volta, não fosse a chateação que sentiu pelos primos. Nessa merda de lugar, o pessoal das antigas que puxava um fumo era visto como os próprios cavaleiros de Baal-Zebuth, agora os meninos tinha descoberto a máquina do tempo e ido direto pra a idade da pedra, visitar os flinstones ao som do Facção central.
Descobriu que o barraco onde Mara estava era outra palafita quase do lado da birosca de Futica, mas imperceptível em noite sem lua. Um claridade mínima, no entanto, denunciava o casebre essa noite, provavelmente um lampião a gás. Chamou, como não teve resposta, subiu por sobre a ponte estropiada de madeira que rangeu e balançou a cada passo seu, divisando a lama, o lixo, os cacos de vidro lá embaixo lhe esperando. Era uma cabana, um quadrado sem divisões coberto com telhas de amianto e com paredes feitas com pedaços de folha de flandres e compensado. O próprio piso era incerto, cheio de falhas por onde o mau cheiro da maré invadia.

A moça estava sentada sobre um colchonete no chão, o lampião ao seu lado lhe fazia a silhueta escura e seus braços moviam-se lentamente levando o cigarro até a boca. Até mesmo a fumaça que expirava assumia toda a sua materialidade, condensando-se no ar frio e espalhando-se pela sal.
- Enoque?
- Oi Mara... sentou-se ao seu lado.
- Oi nego, ela sorriu, e a carcaça que se tornara retornou à vida, plena de uma beleza constrangedora.
- Que diabo você ta fazendo aqui nega?
Calou-se, os olhos foram acostumando-se ao negrume e pôde divisar a mesinha sobre a qual haviam pequenos objetos, pentes, prendedores de cabelo, batom. Um lata de óleo, aparentemente pra depositar água, uma sacola aberta com roupas desarrumadas, alguma louça sobre o muro da janela que emoldurava a escuridão e só.
- Fala Mara, que porra você ta fazendo aqui?
Ela puxou o cigarro até quase o filtro, soltou a fumaça num jato, pra cima.
- Tô morrendo neguinho, eu to morrendo!
Silenciou por alguns minutos, deleitado com o dilatar das pupilas e a nova visão que traziam, os olhos acostumados à falta de luz. Também tentou em vão decifrar algum sentido no gosto metálico das palavras que a menina tinha dito. Antes que pudesse perguntar, a amiga foi direto ao assunto:
- Eu tava voltando de um show em Salvador, uns quatro meses atrás, sozinha. Quando vinha descendo a rua do açougue, cinco homens me pegaram, me jogaram dentro da casa que Madimbu ta construindo, me bateram muito, me moeram de pancada, depois me estupraram, os cinco, de todo jeito.
- Merda, que merda, e você conhece os caras?
- Reconhecer? Eu tava meio descordada Noque, das porradas, da vergonha, da dor, mas era tudo cara conhecida daqui, Vado, Neno, o Seu Zé da carroça, o BR e o Madimbu também.
- Porra Mara, esses caras são todos pais de família, que porra é essa???
- Raiva nego... esse povo daqui sempre me tratou como se eu fosse uma vagabunda. Você saiu daqui tem o quê? Três anos? Eu passeia dar umas voltas em Salvador, ir nas festas de rock, me vestir diferente, pintar o cabelo...
- Virou roqueira doida...
- Doidinha só, nem parei de estudar, nem de trabalhar na lojinha de Gueu, dava banca pros meninos do ginásio. Mas pro pessoal daqui, eu virei uma ameaça, uma ofensa ambulante, entendeu, como se eu fosse uma puta, uma pervertida, eu guardando o cabaço pra algum príncipe encantado, velho, e eles dizendo que eu vivia em Sodoma e Gomorra, que eu fumava, bebia, fodia com todo mundo, cultuava o diabo...
- Mas tem tanta menina que faz tudo isso aqui Mara...
- Que fuma, bebe, que fode, que cheira, mulher que corneia o marido, marido que dá a bunda pra amigo, pai que estupra as filhas , filha que tem filho do pai, mulher que faz feitiço pra matar a outra, crente que bota ebó na encruzilhada. Tem de tudo aqui nesse buraco, meu irmão, mas tudo é na boca de siri, todo mundo sabe, mas ninguém fala nada.
- Aí aparece uma maluca vestida de preto, com um cigarro na mão e uma garrafa na outra, fica fácil pra todo mundo jogar pedra.
- Você entendeu a merda toda, mas...
Chorou, ele pôde ver na luz da brasa do cigarro, as lágrimas rolando em seu rosto. Reviu os olhos firmes, o nariz largo e perfeito, a boca linda e grossa. Reviu a marca dos ossos na face, a marca dos ossos nos ombros, na clave, os seios tesos sob o pano fino da blusa. Puxou-a pra si, beijou suas lágrimas e deu um abraço forte. Sentia que um pouco mais de força podia quebrá-la, tão magra que Mara estava. Então deitou a moça no colo e ficou olhando a fumaça sair pela janela.
- E seu pai, o que fez?
- Há, há, o filho da puta deve ter ficado com inveja, se perguntando porque não fez isso antes. Me botou pra fora de casa, depois de me dar uma surra. Esse barraco aqui foi a Carol que arranjou, onde os irmãos dela preparavam pra pescar, isso antes de viajarem. Eu ainda tinha uma grana, tava guardando pra bancar um cursinho, só pensava em estudar. Agora to aqui contando os dias...
Ele já fora doido por essa preta, fizeram juras de amor, promessas de casamento sob a luz da lua cheia lá em cima no Barão. Se viajou sem nem mesmo avisar, foi no olho grande das promessas com que a cobra de olho verde lhe enfeitiçou. Empolgado com o futuro de plástico que a italianinha lhe apresentou. Viajou todo cheio de si, íntegro dum egoísmo juvenil. Percebeu-se fascinado por essa Mara firme e madura, segura em seus comentários ácidos e que sustentava um porte majestoso ainda que a tragédia estivesse estampada em sua face. Já não era mais a menina que conheceu. Mara fizera-se mulher pela dor, e essa mulher lhe parecia de um poder enorme.
- Você vai ficar bem, Mara!
- Um mês atrás – disse ela sem considerar seu comentário – eu descobri que tava grávida, prenha de um dos sacanas que me estupraram. Nego, eu to comendo minha própria carne de tanta dor por cima de dor, mas não, disse, vamos, a Carol trouxe o remédio na semana passada, comprou na Feira de São Joaquim. O feto saiu, saiu anteontem, mas eu sinto que essa porra ainda ta dentro de mim, ainda ta me matando...
-Mara véa, você vai ficar bem, confie em mim, eu vou te pegar amanhã pra te levar em Salvador e fazer a curetagem. Isso é muito comum nega, nada de mais. Fique tranqüila que amanhã eu te pego.
Suspendeu o rosto da moça, beijou-a, nem o gosto amargo de nicotina conseguiu mascara o visgo doce de sua saliva. Fechou os olhos, como se tornando cúmplice da escuridão. Suas mãos foram nos seios fortes, percorrer o quadril que a blusa fina e saia fina e a calcinha fina quase não guardava e percebeu que, mesmo magra, a nega permanecia com os contornos exatos, dura que nem galinha velha. Percorreu a fenda, o mistério, já estava ficando doido.
- Pára nego, disse a menina se levantando, eu tô toda arrombada, toda fodida, só esperando a febre OUA hemorragia que vai me matar. Não deixe despertar o desejo que eu não sirvo mais pra isso. Não sirvo, não quero e não posso. Vai embora daqui, me deixe morrer, merda, sozinha como eu sempre fui.
Ele levantou de um salto, assustado com a rispidez com que Mara lhe falara. Tomou pé de si mesmo na porta, o mundo agora se clareava aos olhos acostumados ao breu.
- Vou nega, mas volto,e você vai ficar bem!

Manhã voltou com o mesmo sol de ontem. Sol queimando o cabelo curto, queimando as costas, queimando os pés descalços na terra quente. Tudo era a mesma algazarra de cores e de sons, as pessoas eram as mesmas, as casinhas coloridas com as roupas tremulando no varal, as velhas carcomidas descendo o morro carregando na cabeça os balaios de cajus, castanhas torradas e massa puba, a mesma bandeira branca de Tempo balançando na casa da Velha Carminha, no sopé do morro que parecia abençoar o campo de terra, onde agora estava.
Viu tanta gente enlouquecendo de frio e de solidão. Gente que podia reagir a qualquer porrada, a qualquer derrota, mas que ficava indefesa quando confrontada com a negação. Tanto neguinho músico, percussionista, artesão, que subia e descia o Pelourinho atrás das gringas, e tava agora falando bobagem na Europa, andando sujo, doente, drogado, porque não se adaptaram à experiência do não ser. Nem mesmo marginal, nem mesmo criminoso, nem mesmo inimigo, apenas um nada ambulante. Sem família, sem lugar, sem língua, comendo resto, sofrendo contrações nervosas nos músculos, tremendo as mãos, exalando o mau cheiro comum aos loucos.

Suou a putinha italiana com quem viajou pra Milão. Numa arrancada pra a grande área, suou o policial de Marselha que lhe roubou quase dois mil euros. Cobrando um escanteio, suou os olhares de medo, os silêncios, as indiferenças em uma cobrança de falta, o menino moçambicano que vira morrer em Lisboa sem ninguém ajudar. O guarda da imigração não lhe respondia nada, doze horas trancado no aeroporto de Madri. Sem água, sem comida, explicação, sequer um olhar. O dia já virara em noite, quando saiu e, talvez tivesse passado uns vinte anos ali dentro, contando os azulejos da parede. Ninguém pra abraçar, ninguém a quem se queixar, ninguém era ele mesmo e suou em um golaço de cabeça depois de um cruzamento de esquerda o primeiro dia em que cheirou o veneno branco que parecia lhe dar superpoderes e torná-lo alguém, um personagem patético de sua inexistência.
Suava pelos cabelos, pelo peito, pelas axilas, pelo púbis, pela perna, acreditou ali na libertação pelo suor e se sentiu livre, certo e tranqüilo em seu sorriso, quando os outros vieram abraçá-lo pelo gol que decidia a partida e o destino dos engradados de cerveja que estavam em jogo.
No bar de Dona Joanita, parecia haver uma festa, com os pescadores que tinha pescado mais de cem quilos de peixe, coisa rara hoje em dia que a maré ta suja e aparece sempre peixe boiando morto na beira da areia. Todos sem camisa, os coroas, pareciam tão duros quanto os mais jovens. Alguns mais secos, mas todos musculosos e pretos das mais diversas matizes. Tirando o peixe reservado pra vender no outro dia lá em São Joaquim, Dona Joanita cozinhava uma moqueca das grandes que seria comida por todos os presentes. Quando se cruzaram os pratos de peixe com as cervejas do jogo de bola, a coisa ficou ainda mais alegre . Moças dançando os últimos pagodes que tocavam no rádio do bar, meninos descalços pedindo doces aos que eram pais e tios. Até quem estava saindo agora do colégio, tiravam as camisas azuis do governo e entravam na farra.
Enoque se sentiu constrangido quando percebeu que um dos pescadores sentado na mesa era o pai de Mara. Brindando com os amigos, bebendo cerveja, brincando com os meninos que se aproximavam. Ele próprio também o chamavam de “tio”,quando era mais novo. Era um dos pescadores mais experientes do lugar e por isso todos no bar lhe festejavam com cervejas e gozações.
- Os peixe deve ser tudo viado pra gostar de você Totonho...
- Peixe é igual a você peão, eu arranco a cabeça e como o rabo...
- Que nada BR, num vi nada dessa valentia quando a véa Joana pequena tava lhe caçando...
- Deus é mais, peão, quem gosta de assombração é cemitério...
- Que nada fuleiro, Cê tá comendo até bunda de cachorro doente...
Todos riam, ele também, já alterados na pequena euforia da cerveja , que para a maioria dos que estavam ali, nem era bebida, acostumados ao travo forte da cachaça. Foi pelo nome do outro que percebeu, parceiros de mesa, o pai e o estuprador da filha, celebrando a fartura da pescaria. Preferiu expulsar a filha do que procurar briga grande com os caras. Ele mesmo experimentava a onda de simpatia mútua que parecia unir a todos naquele momento. Dizia uma piada, fazia uma graça com as meninas, tirava um sarro com o time perdedor, desfrutava da naturalidade do seu lugar, dos seus amigos.

Covarde, pensou entre sorrisos, renegou a filha, largou a menina pra morrer na maré, e ficava ali rindo com um dos que tinha desgraçado ela. Que porra que tinha ali de covardia, de inveja nos olhares, de maledicência nas brincadeiras, crueldade escondida nos abraços dos amigos e que somente se mostrava quando as portas se fechavam e a privacidade dos lares justificava o silêncio de tudo. Não fantasiava. Era também sua miséria, sua covardia, sua inveja, sua pequenez de alma que ele compartilhava com todos os que ali estavam. A menina desafiou, quis ser diferente, parece que incomodou alguma coisa encravada no peito desse povo todo que cantava e bebia, cúmplices de um crime coletivizado pela omissão de todos.
Mas como violaram a menina que todos viram crescer? Mara foi sempre tão bonita, toda desembaraçada, falante, boa aluna. Os meninos brigavam por ela nas festas de fim de ano. Mara... Como foi ingênua. Eles podiam desculpar tudo, menos seu esforço por ser diferente. Era como quebrar uma espécie de lealdade que abraçava os bêbados, os viados, os crentes, os macumbeiros, as putas, as corneadoras, os vagabundos, mas relegava a um tipo ativo de ostracismo, àqueles que se soltassem da matilha. Aquela merda ia ser soterrada pelo crack, pelo pagode, pelo apocalipse dos crentes, pela obesidade, pela fumaça química das refinarias, mas não podia suportar o desafio de uma menina linda, ainda que um pouco desnorteada.
Sorriu.
- Não, Dona Joanita, pra mim já ta bom de cerveja... vou subir.
Ia vê-la, fisicamente, achava que podia matá-lo com facilidade, o pai, era forte, o outro também, mas cortava no zinco, os dois, e ia se sentir bem por isso.Deixou o copo sobre o balcão, ia buscar Mara, levar no hospital, cuidar, engordar a nega, fazer a piveta florescer de novo, esquecer a merda que fizeram com ela e ela ia ser sua mulher e ninguém ia mexer com sua mulher. Subiu até a igreja, pegou a rua que descia até as palafitas. O sol estava bem em cima da sua cabeça, quase ninguém se aventurava pra fora da sombra das casas e dos bares. A maré brilhava refletindo a claridade, a lama seca partia sob os seus pés. Atravessou a ponte de madeira do lugar onde Mara estava. Carol estava sentada com a outra deitada em seu colo. Raios do sol desciam pesados entre as frestas do telhado. A beleza da imagem, no entanto, não o impediu de perceber as lágrimas que desciam no rosto de Carol. Ao lado de Mara, uma poça enorme de sangue já ressecado.
- Não dá mais tempo... Eu quis te chamar, mas não quis deixar o corpo. Pelos bichos, né? Ela queria te ver...
Enoque sentou-se ao seu lado, tocou seus cabelos, beijou sua testa. Sentiu-se enjoado e o vômito quase vem na boca. Nada mais havia pra ser feito. Ele ia embora dali hoje mesmo.